quarta-feira, dezembro 29, 2004

Ontem esmaguei acidentalmente um pequeno caracol

Hoje recebi do José Eduardo um texto de perguntas e respostas do primeiro livro do mestre Zen Hôgen publicado em Portugal pela Assírio e Alvim, Caminho Aberto (esgotadíssimo), com a autorização de publicar esse artigo online no nosso site. Ao ler na diagonal, parei nesta pergunta:


Ontem esmaguei acidentalmente um pequeno caracol. Este pequeno incidente fez-me ver o terrível sofrimento e a dor sem sentido que existem neste mundo. Sei que o sofrimento é uma parte inevitável da vida, mas como é que alguém com absoluta compaixão, um verdadeiro bodhisattva, poderá não se afogar no mar de sofrimento que nos rodeia a todos?


A resposta de Hôgen é extensa, por isso não vou incluí-la aqui na totalidade, mas cito uma parte:

"O bodhisattva não se afoga no mar do sofrimento, suavemente deixa-se afundar nele. A cruz do Cristo, que representa o sofrimento do mundo humano, está presente na posição sentada do Buda. A posição sentada do Buda e a cruz de Cristo, uma vez encontradas e experimentadas, são ambas um só e mesmo caminho da vida original; ambas nos penetrem.

Sofrimento e vida coexistem inevitavelmente e são tão inseparáveis como a forma o é da sua sombra. Necessitamos dos nossos corpos e vidas para realizarmos a compaixão por todos os seres; tal como Buda necessitou do seu corpo para se sentar em zazen; tal como Cristo necessitou do seu para estar na cruz. Não podemos experimentar o zazen cósmico do nosso corpo, sem deixar de integrar a natureza dessas duas realidades.

Os bodhisattvas sentem como sua a dor dos outros. Por isso, este voto emerge do fundo da própria compaixão:

«São inumeráveis os seres sensíveis:
Faço o voto de os salvar a todos.»

O sofrimento que é causado pelo nascimento, pela velhice, pela doença, pela morte, pelo desejo e pela incapacidade de realizarmos os nossos votos, esse sofrimento permanece connosco ao longo de toda a nossa vida. Tal como a mãe que não consegue dormir em paz se o seu filho chora ou está doente, assim um bodhisattva tem apenas um desejo (ou sofrimento), o de ajudar os outros. Esta é a sua única «doença» ou «limitação». É este o único papel que lhe está reservado no decurso do tempo, através do espaço.

Os bodhisattvas continuam a viver neste mundo para poderem cumprir o seu desejo profundamente compassivo. Vivem para nos ajudarem a alcançar a outra margem. Esse seu único desejo impede-os necessariamente de permanecer na perfeição final do Nirvana."


Já agora, para quem não conhece, o último livro do mestre Zen Hôgen Yamahata publicado em Portugal, Folhas Caem, um Novo Rebento, é lindíssimo.



imagem de http://www.openway.org.au